Por Jorge Henrique Barro
Introdução
Neste sentido, devemos notar que a Reforma Protestante foi, e continua sendo, um marco histórico e divisório na história da igreja cristã. Suas consequências até hoje podem ser percebidas e reconhecidas na igreja. Uma das questões que a Reforma Protestante não conseguiu trabalhar com mais profundidade e abrangência foi a eclesiologia e consequentemente, a missão pastoral da igreja. É comum ouvir o comentário que a doutrina do sacerdócio universal de todos os crentes não conseguiu ser mais que uma teoria (não saiu do papel), tendo a igreja, até os dias atuais, uma exagerada ênfase no clero em detrimento ao “laicato”. Ao longo da história, notam-se ministérios e ordens que surgiram “fora” da igreja, ou seja, fora da estrutura de poder, sendo movimentos que surgiram na periferia. Dr. Pierson defende uma tese que diz “que renovação e expansão são frequentemente vistas como tendo início na periferia das estruturas eclesiásticas dos dias atuais” (PIERSON, 1996, p. 15). Por exemplo, a própria Reforma e as atitudes dos reformadores não surgiram do centro para a periferia, mas da periferia para o centro, sendo ela uma busca por revitalização da igreja que envolvia questões teológicas profundas.
Muitas ordens e ministérios foram e são consequências de movimentos que vieram da periferia. Um outro exemplo muito claro são “Os Franciscanos” (como também os Dominicanos). Boff ((1982, p. 127) afirma que:
A experiência eclesial de Francisco é extraordinariamente sugestiva para os dias atuais no qual vivemos. Mais e mais, a Igreja, como uma totalidade, está se movendo do centro para a periferia. Ela gradualmente está entrando no mundo do pobre, tornando possível para eles também sentirem que são Igreja... Esse processo de encarnação é somente possível com a grande coragem do Evangelho e a liberdade do Espírito, como no caso de Francisco de Assis.
Meu desejo neste estudo é analisar Francisco de Assis, como sendo um movimento de periferia, que se tornou um modelo de pastoral a ser seguido por nós também.
Antes de olharmos para Francisco de Assis, necessitamos primeiro definir o que vem a ser “pastoral” e, a partir dessa definição, voltarmos para Francisco de Assis e entender como podemos ser desafiados para uma pastoral que possua desafios similares para os dias de hoje.
1. Uma breve definição de “Pastoral”
Neste trabalho, ao falarmos de “pastoral”, estamos falando basicamente da missão da igreja em perspectiva pastoral. Costas disse que “sem pastoral a teologia se trunca” (in Bonino 1975:83). Neste mesmo sentido, Karl Rahner fala que “toda teologia deve ser pastoral e toda pastoral deve ser teológica” (HOCH, 1993, p. 14). Concordo plenamente com ambos e acrescentaria que “sem pastoral, não só a teologia, como também a missiologia se trunca”. A pastoral é, portanto, missão como um todo e não exclusivamente a tarefa do pastor. Pode incluir, mas vai muito além, sendo uma tarefa de todo o povo (sacerdócio universal de todos os santos) para todas as pessoas. Marcio Silva entende que “necessitamos elaborar um ministério pastoral a partir da Cristologia, com o conceito de pastoral, que resgate aquilo que se perdeu na história, que é o sacerdócio universal” (SILVA, 1994, p. 9)
Desta forma, podemos entender por pastoral como sendo a praxes do cristão. Segundo Galilea afirma que “a pastoral não é outra coisa que a missão da igreja, e a razão de ser a igreja é missão” (GALILEA, 1974, p. 45). Se por um lado pastoral não é de exclusividade do pastor/a, também não é propriedade de uma única instituição: é tarefa do povo de Deus em missão. É importante afirmar isto porque muitos seminários, especialmente os que servem as denominações, sentem-se os “donos” da formação pastoral. Essa não é uma generalização, porque a maioria dos seminários tem como, preocupação básica “formar pastores” (e, mais raramente pastoras) para a própria denominação. Raros são os seminários que tem como prioridade e meta formar agentes de pastorais para todos os ministérios da igreja e necessidade da sociedade. São raros, mas existem. Os seminários surgiram basicamente para aprimorar o dom de pastor. Eles estão certos naquilo que incluem, mas reducionistas por aquilo que excluem. Às vezes, penso que é um desperdício para o Reino de Deus gastar tanto tempo e dinheiro para suprir apenas um dom: o de pastor. E, quanto aos demais? Isso é, a meu ver, uma grave denúncia contra a nossa eclesiologia. Se faz importante perguntar: quem serve quem? E ainda, quem está a serviço de quem? Se os seminários estivessem realmente a serviço da missão da igreja, então cada vez mais encontraríamos ali pessoas se preparando, não somente para serem pastores(as), missionários(as), evangelistas e educadores(as), mas também pessoas com os outros dons mencionados na Bíblia. A boa nova é que começam a surgir esse tipo de seminários. Quão radical e diferente seria o envolvimento da igreja na sociedade, seja para ser luz (a esperança da salvação) ou sal (a esperança da transformação) se a nossa visão fosse que “todos” os crentes são agentes de pastoral na sociedade. Quem é o agente de pastoral hoje? Infelizmente, o próprio pastor, que ao mesmo tempo prega, instrui, exorta, aconselha, visita e evangeliza. Quanto mais ministérios remunerados tivermos na igreja, não será prova do sucesso financeiro dela, mas prova de que nela existem muitos que fazem pouco (os membros) e poucos que fazem muito (os pastores ou obreiros/as remunerados/as). Essa falta de visão do crente como agente de pastoral se dá por conta de uma visão distorcida da eclesiologia e a alta visibilidade dos ministros e ministérios “profissionais”. Resultado: igreja clerical. Neste sentido, José Rubens Jardilino fala da teologia como sendo “um exercício para orientar a prática e uma prática visando corrigir a teoria” (JARDILINO, 1993, p. 21).
Uma vez definido o que é pastoral, olhemos para Francisco de Assis e seu modelo de pastoral.
2. Francisco de Assis: seu contexto e sua história
Francisco nasceu em Assis, uma pequena, mas populosa cidade na Itália, em 1181 (ou 1182?) e morreu no mesmo lugar em 1226, tendo a breve vida de 45 anos. Seu nome era Giovanni di Pietro di Bernardone, recebido no batismo, que depois passou a ser Francesco, ficando mais conhecido como Francisco de Assis (nome da sua cidade). Era filho de pais ricos, que trabalhavam no mercado de roupa. Seu pai era Pietro Bernadone e sua mãe Madonna Pica, filha da nobreza de Provence. Gastou sua juventude com futilidades da vida: muito dinheiro, roupas finas, mulheres, e o luxo da nobreza. Ele vivia, diz Boff, como um ‘boêmio menestrel’, tornando-se o líder de uma sociedade jovem libertina” (BOFF, 1982, p. 66). Mas já nesta época, ele possuía coração sensível para com a pobreza.
A questão da pobreza não surge do nada em sua vida. Alguns antecedentes históricos nos mostram como Francisco de Assis foi cada vez mais ficando devoto à pobreza. A Europa de sua época era um continente em profundas mudanças e transformações. Ela entrava na Idade Média e estava mudando do sistema feudal e rural para uma sociedade mais urbana, onde especialmente o comércio se despontava com muita vitalidade. Por meio do Feudalismo, começa a surgir a classe média. Em termos religiosos, os hereges estavam próximos do clero e pouca distinção havia entre eles. A falta de zelo e de renovação da igreja eram visíveis. Surgem também as Cruzadas e inquisições para se tentar forjar um estilo a força, pois o triunfo das cruzadas era na verdade o “triunfo da fé”. Basílio da Bulgária (Basil of Bulgária) é queimado em Constantinopla e Arnaldo de Brescia (Arnold of Brescia) é executado em Roma porque disse que a igreja e seus líderes deveriam dar todas as suas propriedades. Pedro Waldo, como o pai de Francisco, era um mercante rico do Sul da França, que acolhe em sua vida o evangelho da pobreza e começa a pregar para os pobres da França. Os seguidores desse movimento são mais tarde chamados de “os pobres de espírito” (Valdenses). Este movimento tomou popularidade especialmente entre as pessoas relacionadas com o mercado de roupas. neste contexto nasce Francisco, na cidade de Assis, que pertencia ao chamado Santo Império Romano. Os Valdenses são considerados “heréticos”. Inocêncio III foi eleito bispo de Roma (Janeiro de 1198) e Assis agora está sob o domínio Papal. Começa uma guerra civil em Assis porque a classe média acredita que o Bispo de Roma não iria conseguir proteger a classe alta. Começa também a guerra entre Assis e Perugia. Perugia era totalmente pró-papa. Nesta guerra, Francisco foi ferido logo na primeira batalha e vai como prisioneiro em Perugia, ficando na prisão mais de um ano. Na prisão fica doente, e é solto por intermédio do prestígio de seu pai. Durante esse período de enfermidade, uma febre constante, ele começa a pensar mais sobre a eternidade. Porém ao se recuperar da enfermidade, suas aspirações militares voltam e ele resolve abraçar a carreira militar. Na noite anterior da partida para guerrear em Apulia, ele teve um sonho no qual ele via um grande corredor decorado com armas. Essas armas tinham a marca da cruz e ele ouviu uma voz que dizia: “Estas armas são para você e seus soldados”. Então ele exclamou: “Eu sei que eu serei um grande Príncipe”. Com este sonho ele parte para Apulia. Porém, em Spoleto ele novamente fica enfermo e outra vez tem um sonho dizendo para ele voltar para Assis. Essa visão é um marco em seu desejo a vida religiosa, regressando em 1205. pouco tempo depois, estava ele orando na Capela de São Damião, diante de um crucifixo antigo, e ele ouve uma voz que dizia: “Vai, e restaura a minha casa a qual está em ruínas”. Ele corre para a loja de seu pai, conta o que aconteceu e pega algumas peças de roupa. Vai ao mercado e vende essas roupas e também o cavalo para começar a reconstrução da Capela de São Damião. Enfrenta rejeição dos amigos, família e também do clero. Diz a seu pai: “Hitherto eu tenho chamado você na terra; de agora em diante meu desejo é dizer somente ‘Pai nosso que estás no céu”. Agora, saia ele pelas ruas de Assis cantando e dizendo “eu sou um arauto do grande Rei”, e casa-se então com a “Senhora Pobreza”.
Certo dia, na pequena Igreja Porciúncula, ele ouviu o Evangelho do dia, o qual dizia
A estes doze enviou Jesus, dando-lhes as seguintes instruções... Não vos provereis de ouro, nem de prata, nem de cobre nos vossos cintos; nem de alforje para o caminho, nem de duas túnicas, nem de sandálias, nem de bordão: porque digno é o trabalhador do seu alimento (Mt 10.1,9-10).
Daí em diante, sua vida foi radicalmente comprometida pela simplicidade e pobreza, seguindo literalmente o que Jesus prescreveu aos seus discípulos ao saírem para os campos missionários.
Certamente pode-se afirmar que Francisco de Assis foi um homem rico que fez opção pela simplicidade e pobreza, buscando em Cristo o modelo para sua vida e posteriormente sua Ordem – a Ordem dos Franciscanos. Essa ordem (como também os Dominicanos), com uma nova dinâmica espiritual, traz uma revitalização dos mosteiros existentes. Os mosteiros não mais poderiam ser um centro apenas de reclusão, mas um centro de onde a pessoa iria para ser treinada, preparada e depois enviada ao mundo para pregar e viver o evangelho do Reino. Por esta razão, os Franciscanos tiveram uma forte visão missionária e prática do Evangelho. Francisco de Assis desenvolveu uma pastoral naquele tempo que ainda hoje continua sendo um grande desafio para a igreja. olhemos, portanto, para algumas características da pastoral Franciscana.
3. Uma pastoral que imita a Cristo
Um dos versos prediletos de Francisco era “porquanto para isto mesmo fostes chamados, pois que também Cristo sofreu em vosso lugar, deixando-vos exemplo para seguirdes os seus passos” (1 Pe 2:21). Imitar a Cristo era seu alvo. Em seu Testamento ele diz: “Nós O adoramos, Senhor Jesus Cristo, aqui em todas as igrejas do mundo inteiro, e nós o santificamos, porque pela Sua cruz tem redimido o mundo”. Costas afirma que
O centro de gravidade de uma reflexão pastoral da igreja para o ser humano latino-americano deverá ser, então, Cristo presente por seu Espírito na situação pastoral concreta... Daí a pertinência do Cristo pneumático como critério de verificação da situação pastoral (COSTAS, 1973, p. 87).
Lee, pastor coreano, que em 1985 recebeu seu Doutorado em Missiologia no Fuller Theological Seminary, escreveu sua tese sobre “Os Princípios e Práticas da Missão Franciscana no Século XIII”, confirma que
a imitação de Cristo era a base sobre a qual eles construíram sua vida cristã. eles tinham um ardente desejo para obedecer aos ensinos bíblicos literalmente, especialmente os ensinos de Cristo... A expedição missionária e evangelística de Francisco era uma expressão do seu zelo pela vida vivida por meio da imitação de Cristo (LEE, 1985, p. 4-5).
O alvo de Francisco era imitar a vida e ministério de Jesus. Ele compreende que esse modelo possuía as seguintes características: humildade, simplicidade, pobreza, obediência e oração. Essas características podem ser entendidas da seguinte maneira:
Humildade: uma prova de quebrantamento interior
Simplicidade: uma prova de desprendimento
Pobreza: uma prova de compromisso
Obediência: uma prova de submissão
Oração: uma prova de dependência
A meu ver, essas também devem ser marcas distintas para a pastoral atual. Vivemos em uma sociedade onde cada vez mais o individualismo, a tecnologia e o dinheiro são alvos buscados. A pastoral que não é humilde, que não busca ser quebrantada, será como o sacerdote e o levita da parábola do Bom Samaritano, que passou ao largo, sem importarem com a realidade e condição do caído. Viver atualmente sem quebrantamento é o mesmo que não se importar com a dor alheia. Na pastoral da Jesus havia espaço para os quebrantados. Jesus disse: “O Espírito do Senhor Deus está sobre mim, porque o Senhor me ungiu, para pregar boas novas aos quebrantados, enviou-me a curar os quebrantados de coração...” (Is 61:1).
“Para Francisco, o Evangelho é Cristo” (BOFF, 1982, p. 25).
4. Uma pastoral para a vida humana e a vivência do Evangelho
“Não palavras, mas ação”, ou seja, “vive o Evangelho”, esse era o lema de Francisco de Assis. Neste momento temos que pensar a respeito do “lócus” dessa pastoral. Dois perigos se nos apresentam. Primeiro, fazer do ser humano esse lócus, correndo o risco de se tornar uma pastoral antropocêntrica. Segundo, fazer da igreja o lócus pastoral e então cair no eclesiocentrismo. Costas sugere que “buscamos uma pastoral da igreja para o homem latino americano” (COSTAS, 1973, p. 86).
Ao estudar a vida de São Francisco fica claro sua opção pela vida. Nele encontramos a valorização do ser humano como também a valorização da natureza. O sistema ecológico não foi esquecido por ele. Para ele, a reconciliação do ser humano com Deus deveria resultar também na reconciliação com a natureza. Em suas orações e cântico sempre encontramos uma relação com a natureza, como por exemplo em seu famoso “Cântico do Irmão Sol”.
A meu ver, a questão da pastoral voltada para vida como um todo é essencialmente uma questão de qual é a nossa visão sobre o “mundo”. geralmente, o mundo é visto nos círculos evangélicos, de maneira negativa e demoníaca. O mais importante é a salvação vertical, ou seja, a salvação do indivíduo. Por isso, a palavra “alma” ocupa um lugar de destaque na pastoral evangélica. Por sua vez, a palavra “corpo” e “natureza” continuam na periferia. A pastoral evangélica muitas vezes se formou como sendo “anticatólica”. É comum, no Brasil, ouvir as pessoas dizerem: “Isto cheira catolicismo”.
Paulo diz que a natureza aguarda com ardente expectativa o dia da sua redenção (Rm 8:18-25). Também diz a criação vive na esperança de ser redimida do cativeiro da corrupção e que toda a criação a um só tempo geme e suporta as angústias até agora. Necessitamos mudar a nossa visão sobre o mundo. o mundo, como sistema de valores, está debaixo da influência satânica. O mundo, como criação, é de Deus, o qual será restaurado em “novos céus e nova terra”. Não mais é tempo de se falar de uma pastoral parcial, diminuta e exclusivista. É tempo de integração e integralidade. Isso significa uma pastoral voltada para a vida e o ser humano. Uma pastoral além dos horizontes eclesiásticos.
5. Uma pastoral onde os pobres não são esquecidos
Robinson diz que “esta heroica imitação da pobreza de Cristo era talvez a marca distintiva da vocação de Francisco, e ele foi indubitavelmente, como Bossuet expressou, o mais ardente, entusiástico e desesperado amor pela pobreza que o mundo já viu” (ROBINSON, 1913, p. 13)
Muito conhecida ficou sua frase: “Eu me casei com a Senhora pobreza”. Se ele encontrasse alguma pessoa mais pobre do que ele, então ele mesmo se tornava mais pobre do que aquela pessoa. Para ele, ser pobre era uma questão de imitar a Cristo que “não tinha onde reclinar a cabeça” (Mt. 8.20). Se assim vivia Cristo, assim também deveria viver os seus servos e servas. Outro verso muito importante que influencia sua vida para a pobreza, imitando Cristo, é que ‘Cristo, que, sendo rico, se fez pobre por amor a vós, para que pela sua pobreza vos tornásseis ricos” (II CO. 8.9).
“Os pobres sempre os tendes convosco” (Mt 26:11), disse Jesus. A questão central aqui não é desprezá-los porque eles sempre serão muitos, mas responder a Judas, que, tinham uma “pseudo preocupação” com os pobres. Possivelmente Judas via naquele perfume caro uma boa oportunidade para fazer dinheiro e saquear a bolsa, pois “tirava o que nela se lançava” (Jo. 12.6). Infelizmente muitos “usam” este texto para se desculpar e citam o próprio Jesus dizendo que ele falou que sempre haverá pobres no mundo. A questão aqui é como desenvolver uma pastoral consciente onde os pobres, mesmo sendo muitos, não são esquecidos. O esquecimento dos pobres pode ser visto no seguinte processo:
a. Indignação
Nos sentimos indignados com a situação de miséria e falta de respeito para com aquelas pessoas que se encontram em situações precárias. Sentimo-nos horrorizados, até mesmo escandalizados, porém parece que não temos força suficiente para reverter esse quadro e para mudar a situação. Esta indignação muitas vezes leva-nos a reuniões, em que muito se discute, muito se fala, muito se pensa, e pouco se faz. Normalmente estas conversas e discussões logo caem no esquecimento, ou tomam novas direções se outro fato ocorrer e for mais indignante que o primeiro. Assim, o círculo vicioso mais uma vez tem início, com novos motivos de indignação. A indignação, se não nos levar à uma ação concreta, consequentemente leva-nos a “impotência”.
b. Impotência
Ficamos horrorizados, mas ao mesmo tempo nos sentimos impotentes, incapazes de fazer alguma coisa. Surge aquele sentimento do tipo “não posso mesmo, deixa para lá”. Exemplo: “O tráfico de drogas é um problema muito sério, mas é de responsabilidade da Polícia Federal, não tenho nada a ver com isso, e muito menos tenho autoridade para fazer algo. Os meninos de rua, se o governo não faz nada, quem sou eu para fazer”. E assim por diante, crescendo sempre este sentimento de impotência e de impossibilidade. Este sentimento leva-nos a esquecer o problema, até nos deparamos com outro que nos escandalize, mas sempre com aquele sentimento de impotência, levando-nos para o próximo passo, a “indiferença”.
c. Indiferença
Logo a consciência vai ficando cauterizada. Não mais nos importamos com o que está acontecendo com os outros, nos tornamos indiferentes aos problemas que afetam a sociedade em que vivemos. Gradativamente vamos nos “conformando com este século”. Essa indiferença também é fruto de um sistema individualista que vive a chamada sociedade moderna e capitalista. Nosso egoísmo é muito forte., e tira a nossa atenção do próximo, do “outro”, fazendo-nos voltar nossos olhos para nós mesmos. Com isso o problema do “outro” é “problema dele, e eu não tenho nada a ver com isso”. Assim a indiferença se torna característica peculiar em nossas vidas, dando lugar a morte de nós mesmos, que é a perda da “sensibilidade”.
d. Insensibilidade
E culminando na “morte” de nossa sensibilidade as crises enfrentadas pelo próximo, passam de largo sem ao menos nos sensibilizar com a situação do caído. Vejo que este estágio é o pior, pois nos tornamos tão insensíveis, que nada mais pode provocar em nós, reações que nos leve a empatia e à misericórdia. Nos tornamos como pedras, e nossa frieza e insensibilidade são enormes.
Indignação, impotência, indiferença e insensibilidade (coincidentemente quatro I’s) são fatais conseqü6encias de um sistema injusto, onde os pobres são cada vez mais esquecidos e desprezados. Erikson afirma que Francisco ‘reconheceu que possessões e dinheiro são símbolos de uma formidável barreira” (ERIKSON, 1970, p. 74). Francisco entendia que o único que possui todas as coisas é Deus, o criador.
Boff (1982, p. 59-64). descreve cinco características que nos ajudam entender por que não devemos nos esquecer dos pobres. Porque
A pobreza é um mal, que produz ausência de significados
A pobreza é um pecado de injustiça
A pobreza deve ser um estilo evangélico de vida – total disponibilidade
A pobreza deve ser uma virtude que se libera dos bens materiais
A pobreza deve ser uma expressão do amor pelo pobre contra a sua pobreza
Desta maneira foi que Francisco de Assis entendeu a pobreza. Sem essa compreensão é muito difícil desenvolver uma pastoral onde os pobres não são esquecidos. Muito significativa foi a palavra de recomendação dos Apóstolos a Paulo e Barnabé, no sentido de eles “se lembrassem dos pobres” em seus ministérios (Gl 2:10). Grande continua sendo esse desafio aos pastores e agentes pastorais da igreja para este próximo milênio. Uma coisa é certa: a pobreza será ainda maior. Como Paulo, nossa atitude e resposta a esse desafio deve ser a de imitá-lo, quando afirmou: eu ‘me esforcei por fazer” com que os pobres não fossem esquecidos em meu ministério.
6. Uma pastoral que busca a fraternidade e identidade (significados)
A quem deve ser essa pastoral? Individuo ou comunidade? A pastoral evangélica sempre olhou mais para o indivíduo por que também está centralizada em um indivíduo, o pastor. Portanto, é uma pastoral não tanto voltada para os ministérios da igreja, mas focalizada no carisma pessoal do pastor. Por sua vez, a pastoral católica esta mais voltada para a coletividade (povo, massa). Aqui não se fala de agente, mas agentes pastorais. Entende-se esta pastoral mais por ministérios do que ministério. Ambas possuem riscos, vantagens e desvantagens. Um dos perigos na pastoral evangélica é a ênfase excessiva na função pessoal que pode gerar um individualismo alienante. Essa pastoral (bem como o pastor) acaba sendo consumida pela comunidade, sendo excessivamente eclesiocêntrica. Por isso a necessidade de se trabalhar com indivíduos, mas também com grupos. A mobilização do povo é algo extremamente desgastante neste tipo de pastoral, pois o sentido aggiornamento é fraco. O corpo local existe, mas sem uma forte conscientização do coletivo. Do lado católico, um dos sérios riscos na pastoral voltada para a massa é que ela pode produzir uma ação de despersonalização. Perigo de anular pessoas em função de estruturas.
O exemplo de Francisco de Assis é um modelo que pode nos ajudar a entender e resolver esse conflito. Essencialmente a ação pastoral de Francisco de Assis está relacionada com a palavra fraternidade (fratello). Onde existe fraternidade envolvida em amor, há atenção tanto para o indivíduo como para a comunidade. A comunidade existe por causa dos indivíduos e os indivíduos existem para a comunidade que serve ao mundo. A comunidade, para Francisco de Assis, deve ser marcada pelo relacionamento fraterno. Boff diz que esses “relacionamentos não devem ser hierárquicos, de uma fonte de poder, mas absolutamente fraternal”. A questão da hierarquia é eminentemente uma questão de poder. Onde há excesso de poder há a manipulação e ausência de liberdade e fraternidade. Uma igreja fraterna é uma igreja construída na base de serviço e ministério, onde todos possuem os mesmos direitos e privilégios. A ideia de Francisco era uma fraternidade onde alguns eram sacerdotes (que deviam ser servos humildes), mas todos os irmãos (friars).
Todos devem ser minores, humildemente prontos para lavar os pés do outro. Suas obrigações familiares incluíam o amor responsivo para cada necessidade, que seja física ou espiritual. A fraqueza de cada um era o desafio de compaixão e reclamava o esforço de todos (PETRY, 1964, p. 139-140).
Podemos destacar as evidências marcantes da fraternidade vivenciada por Francisco de Assis:
- Uma fraternidade marcada pelo exemplo de vida
A vida que o evangelho reclama é profundamente caracterizada pelo modelo de Cristo. Imitamos a Cristo para que o mundo veja o modelo a ser seguido. “Era um princípio de evangelismo pelo exemplo de vida aplicado para os cristãos ao arrependimento e chamado os não-cristãos a salvação” (Lee 1985:5). Muito de falta de exemplo me compromisso atualmente estão relacionados com a falta de coerência entre aquilo que o Evangelho reclama e nossas atitudes individuais e coletivas. É a distância entre o que se prega e o que se vive. Prega uma coisa e vive outra. Podemos afirmar que Francisco de Assis optou por uma coerência radical em sua vida. Por exemplo, ele entendeu que o dinheiro o desviava de servir a Deus com fidelidade. Radicalmente, em voto de pobreza, abandonou suas posses materiais para viver exclusivamente pela fé.
- Uma fraternidade marcada pela felicidade comum
Para Francisco de Assis, a verdadeira Perfeita Amizade (como ele assim chamava) não significava ausência de sofrimento e perseguição, pelo contrário, é em meio aos sofrimentos, perseguições e dificuldades na vida que se deve expressar a verdadeira felicidade. Não é exatamente este espírito de Jesus ao dizer que no mundo temos aflições, mas que deveríamos ter bom ânimo, porque ele venceu o mundo (Jo 16:33). Em meio as aflições da vida é que devemos ser exemplos de perfeita alegria, porque estas circunstâncias não podem roubar o fruto do Espírito que em nós foi colocado: a alegria (Gl 5:22). O reino de Deus em nós é a verdadeira expressão dessa perfeita alegria, porque o Reino de Deus consiste também em alegria (Rm 14:17). Certo dia Brother Leo, depois de ouvir Francisco dizer muitas vezes sobre essa Perfeita Alegria disse: “Pai, eu imploro em nome de Deus, diga-me o que é essa perfeita alegria?”. E Francisco responde assim:
Se nós desesperadamente temos fome e frio, batemos insistentemente na porta, gritamos, e imploramos para ele, no nome de Deus para abrir a porta e deixar-nos entrar, e ele, insensivelmente, diz para ele mesmo, “Esses tipos são insistentes pessoas preguiçosas e necessitam aprender uma lição muito preciosa em suas vidas”, e vem nos atender com um chicote e agarra-nos pelo capuz e nos atira na neve e nos bate sem misericórdia, e nós suportamos tudo isso com paciência e alegria enquanto pensamos no sofrimento do amado Cristo e como não poderíamos imitá-lo – isso, Irmão Leo, você deveria escrever como perfeita alegria (CUNNINGHAM, 1972, p. 165-165).