Por Jorge Henrique Barro
Introdução
Nasci em 25 de abril de 1962. Minha família era pobre e no nosso endereço a letra “F” - de fundos - insistia em nos acompanhar. Quase todas as casas que moramos eram feitas de madeiras e algumas com muitas goteiras. Sempre contei com o carinho dos meus pais, meu irmão e irmãs. A pobreza não tem o poder de tirar duas coisas de nós: o amor e a integridade. Uma família simples, mas unida. Hoje percebo o valor da pobreza em minha vida. Percebo que sou um homem mais grato e mais sensível aos que sofrem. Minha peregrinação em missão sem dúvida passa por essa família e por suas circunstâncias de vida. Uma família que sempre ajudou aos mais necessitados e carentes, tendo uma mãe com o coração como de Dorcas, que ao morrer, “todas as viúvas... chorando e mostrando os vestidos e outras roupas que Dorcas havia feito quando estava viva” (At 9:35). Cansei de ver pessoas em casa sendo auxiliadas por minha mãe, que ensinava as mulheres mais simples e de pouca renda, a fazer roupas, sabão, tomate seco, frutas em compotas e por aí vai.
1. Um filho no templo
Meus pais eram zeladores de uma igreja católica na cidade de Marília, interior de São Paulo. Ali no templo, todos os dias, eu ficava com minha mãe e a via limpando os bancos, lustrando as imagens. Enquanto isso, eu ficava brincando, passando por debaixo dos bancos. Minhas irmãs encontraram um grupo de pessoas da Igreja Presbiteriana e aos poucos toda a família foi para lá. Resultado: meus pais passaram a ser zeladores dessa igreja. Novamente estou no templo, tendo contato com pessoas religiosas, sendo influenciado pelas coisas da igreja. Era Deus me preparando. Mas disso eu não sabia. Ali naquela igreja havia um grupo de pessoas intimamente ligadas ao ministério Palavra da Vida, de Atibaia/SP, onde bem mais tarde, aos quinze anos, acontece minha real conversão ao Senhor.
2. Igreja Presbiteriana Unida: a vocação pastoral
Meus pais mudaram-se para a grande cidade de São Paulo e ali minha peregrinação em missão começa a tomar rumos. Fomos parar na Igreja Presbiteriana Unidade de São Paulo. Meu irmão, que já morava em ali, frequentava essa igreja. Uma igreja que na época composta de pessoas da classe média e alta. Imagine uma família pobre chegando nessa igreja, tendo que lidar com essa nova cultura. No primeiro culto em que fui, estava calçando uma botina e nem sei qual roupa.
Um menino-adolescente pobre, com sotaque de caipira, não conhecia ninguém e teria que aprender a se relacionar com novos amigos e suas culturas. Casas e comidas diferentes da minha. Contudo, contei com a generosidade desses novos amigos que logo me incluíram em suas vidas, famílias e grupos. São tantos amigos que, sem desprezar os não mencionados, pois sou grato a todos, como o João Marcos, Ricardo Quadros Gouvea, Carlos e Marcos Madureira, André Franco, Marcos de Avila, Alfredo Tocci... amigos me aceitaram, me amaram e me acolheram. Ali nessa igreja fui presidente da UPA (União Presbiteriana dos Adolescentes) e depois UMP (União da Mocidade Presbiteriana).
Com a chegada do Rev. Denoel Nicodemos Eller, um homem de coração simples e sensível que gastou tempo comigo. Comecei a ser despertado para o ministério pastoral. Nunca me esqueço de uma viagem até Campinas, para visitar o Seminário Presbiteriano do Sul, que ele me convidou. Dirigindo seu carro ele me disse: “Jorge, não sei por que eu estou pastoreando essa igreja. Ela está cheia de doutores, gente intelectual e rica. Todas as vezes que subo no púlpito eu fico tremendo. Mas Deus me tem força”. Pensei comigo, “esse homem é sério, conhece seus limites, mas sabe do seu valor e que em Deus pode ir adiante”. Essa experiência foi tão forte e minha admiração por ele crescia a cada dia. E foi num desses dias que Deus usou o Rev. Denoel para me vocacionar ao ministério pastoral.
3. O ministério pastoral
Esse pastor querido estava pregando e no final de sua mensagem fez um apelo para todos os presentes no culto. “Quem nessa manhã sente que Deus está chamando para ser pastor, fique em pé, e vou orar por você”. Foi algo imediato. De pronto fiquei em pé, achando que dezenas de pessoas fariam o mesmo. Você já sabe o que aconteceu. Isso mesmo: apenas eu estava em pé. Olhei rapidamente para os lados e imediatamente me sentei, morrendo de vergonha. As pessoas esboçaram rir, quando o Rev. Denoel disse: “Filho, pode ficar em pé. Não tenha vergonha. Pelo jeito é com você que Deus está falando hoje”. Fiz o que ele me pediu, orou e pediu a bênção de Deus sobre esse propósito.
Alguns amigos já estavam me esperando no pátio da igreja e quando cheguei perto lá se veio o comentário em tom de brincadeira, coisas de adolescentes & jovens, nada maldoso: “Quer dizer que agora temos o pastor-jegueira”. Isso porque eu mesmo brincava com meus amigos, por vezes chamando-os de “jegueira”. E rimos juntos. Ali estava eu, um caipira, de família simples, indo para o seminário em uma igreja que só teve pastores de renome. Deus faz essas coisas...
No ano seguinte me apresentei ao Conselho da Igreja, numa sala imponente, com os presbíteros todos ali, e a pergunta veio por parte de algum deles: “Jovem, por que você que ser pastor?”. Prontamente respondi, “para servir a Deus”. Ele respondeu, “mas você não poder servir a Deus sem ser pastor?” “É, posso sim”, falei timidamente. Ele retrucou, “então nos diga porque você que ser pastor”. E minha resposta foi, “não sei, só sei que quero”. Sai da sala para eles decidirem e quando me chamaram, todos olham para mi e um deles diz: “jovem, gostamos da sinceridade do seu coração e vamos te enviar para o seminário”. Sai dali com lágrimas nos olhos.
4. Seminário Rev. José Manoel da Conceição (JMC)
Em 1983 fui estudar no Seminário Rev. José Manoel da Conceição, conhecido como JMC), que pertencia a Igreja Presbiteriana do Brasil e ligado a Universidade Mackenzie. Esse era um seminário recém-criado e, portanto, essas primeiras turmas foram as “cobaias” do projeto. Nossas aulas eram ministradas na Igreja Presbiteriana do Calvário. Era um seminário de linha dura, conservadora com uma teologia voltada para a igreja. O diálogo existia entre os iguais. Os diferentes eram tidos como liberais e progressistas. Esse enquadramento me foi dado quando eu passei a entrar em contato com um ministério que viria a ser um referencial em minha vida e ministério: a Sociedade de Estudantes de Teologia Evangélica, chamada de SETE.
5. A SETE (SOCIEDADE DOS ESTUDANTES DE TEOLOGIA EVANGÉLICA)
Entrei em contato com a SETE por meio do Douglas Spurlock, que foi missionário no Brasil pela SEPAL (Serviço de Evangelização para a América Latina). Ali conhecia pessoas como o Luís Wesley, Wilson Costa dos Santos, Roberto Nobuyuki Handa, Glauber Meier, Júlio Zabatiero, Célio Voigt, Ed René Kivtiz e Ricardo Agreste.
A SETE tinha por objetivo investir em seminaristas de todo o Brasil. Realizava encontros para seminaristas, em Águas de Lindóia, Poços de Caldas e tantos outros lugares. Preletores renomados participaram conosco. O livro, Novos ministros para uma nova realidade, do Caio Fábio, é fruto do tema e a SETE pediu para que ele ministrasse. Nessa ocasião reunimos 600 seminaristas vindos de todas as partes do Brasil. A SETE publicava o Boletim Teológico, que servia de subsídio para os seminaristas e também criou o chamado Clube do Livro, oferecendo livros a um custo bem reduzido e possui a Informativo, para divulgar e comunicar os trabalhos.
Era nítida a influência da SETE em minhas reflexões e trabalhos realizados no seminário. Logo ganhei a fama de liberal e fui proibido de divulgar a SETE no seminário e não podia distribuir nada relacionado a ela. Discriminado por muitos, segui radiante com esse ministério, pois eu estava bebendo de uma fonte teológica que jamais iria morrer. Minha peregrinação em missão passa fundamentalmente pela SETE. Sou eternamente devedor a esse ministério, aos meus companheiros de caminhada com ela, e de maneira especial ao mentor de todos nós, um dos homens mais fantásticos que conhece em minha vida, o amado Douglas Spurlock, tendo ao seu lado o doce Joyce, sua esposa. O Douglas nos marcava por sua criatividade, visão sempre à frente do tempo, discipulador por excelência, instigador, senso de humor aguçado e muito carinhoso. Coloquei minha cabeça a prêmio nessa época, como também vários dos meus companheiros. Disso nunca me arrependi e nem tive medo. Simon Bolívar disse: “cuida da tua integridade que Deus cuidará da tua reputação”. A instituição pode roubar de nós algumas coisas, mas jamais terá a capacidade de roubar a nossa vocação.
O lema da SETE era: “Ser líderes fiéis e eficazes”, por meio de quatro metas: 1. Homens e mulheres de Deus; 2. Filosofia bíblica de ministério; 3. Liderança na expansão do Reino de Deus; 4 Teologia bíblica, contextual e Brasileira.
6. Seminário Presbiteriano do Norte (SPN)
Em 1984 rumei para a cidade de Recife, me transferindo para o Seminário Presbiteriano do Norte. Estando ali e profundamente ligado a SETE, junto com Nobu Handa, levamos a SETE para o Nordeste brasileiro. Abrimos lá a casa da SETE, que também tinha em São Paulo, servindo de apoio aos seminaristas. Vários encontros forma realizados, sendo o primeiro deles com o querido Dr. Russel Shedd, na Palavra da Vida. Dali a SETE se espalha pelo nordeste e vários líderes locais se unem, como o Paulo Maurício Lomba e Sergio Francisco do Santos. Mais tarde o Wilson Costa dos Santos muda-se para Recife, som sua família, para ser o Coordenador da SETE-Nordeste.
Ali no nordeste percebi a urgente a necessidade de uma teologia bíblica, contextual e brasileira. Isso certamente não agradava alguns líderes na época (e nem nos dias atuais). A palavra que eles achavam que deveria ser usada era aplicação da teologia e não contextualização. Hoje, quando uma pessoa não fala de contextualização, não é séria missiológica e teologicamente falando. Uma coisa que aprendi me minha peregrinarem em missão é que os conceitos mudam e as pessoas também. A SETE foi esse fundamento da minha peregrinação; a Fraternidade Teológica Latino Americana o descortinar de uma aventura e imersão na teologia latino-americana.
7. Fraternidade Teológica Latino-Americana (FTL)
Sem dúvida a FTL foi esse outro movimento que me coloca em contato com a uma teologia que iria fazer sentido a minha existência. Na SETE já trabalhávamos o conceito de missão integral. Eu mesmo escrevi um artigo no Boletim Teológico de julho/setembro de 1988, vol. V, nº 10, A teologia da missão integral da igreja (holismo) como ética de alternativa social. Timóteo Carriker escreve para o BT º 21 o artigo, O crescimento integral da igreja. Já conhecendo esse conceito, na FTL entro de cabeça, passo a ser um amante da teologia latino-americana e entro em contato com os teólogos latino-americanos, não por meio de livros e textos, como também pessoalmente, nos muitos encontros e reuniões na América Latina. Por ser Secretário Exceutivo da FTL-Brasil e Secretário Regional para o Brasil, tendo tido o privilégio de participar do Comitê Diretivo. Na FTL entro com contato com os CLADES (Congresso Latino Americano de Evangelização), participando pessoalmente nos CLADES III e IV, ambos em Quito, Equador. Na FTL aprendi a beber do próprio poço, de uma teologia para a vida e a serviço da Missio Dei.
8. O Fuller Theological Seminary (FTS)
Em 1996 rumo para a cidade de Pasadena, Califórnia para fazer meus estudos de mestrado e doutorado. Viver como um estrangeiro é uma experiência enriquecedora. Viver em uma cultura que não a sua é vislumbrante. Foi nessa escola multicultural, com gente várias partes do mundo, como africanos, indianos, coreanos, latinos, americanos etc. que Deus começa a me converter a cultura do outro, assim como fez com Pedro. Vou estudar na Escola de Missões Mundial (hoje chamada de Estudos Interculturais) do Fuller. Ali tenho o privilégio de ser aluno de missionários, como o Dr. Paul Pierson, que foi missionário no Brasil por doze anos. Eu estudava conceitos missiológicos com professores práticos. Dr. Pierson foi meu mentor no mestrado. Sou um eterno devedor a esse homem, o qual denomino meu segundo pai, pelo carinho, apoio, investimento e cuidado. O Dr. Charles van Engen foi meu mentor no doutorado. Homem irradiante, alegre e vibrante, com uma capacidade integrativa enorme, contador de estórias, missiólogo afinado com seu tempo. Foi com ele que uma das minhas paixões temáticas direcionam minha vida: a missão urbana. Ele me desafiou a pensar a missio Dei a partir de Lucas-Atos. O resultado foi a tese de doutorado, cujo livro publicado no Brasil é De cidade em cidade. Quem passo pelo Fuller é não é impregnado de missão, então passou pelo Fuller, mas o Fuller não passou por ele. Para muitos o Fuller ficou conhecido por sua managerial missiology, focando o crescimento numérico da igreja, tendo Peter Wagner como expoente. Quem apenas vê isso não conhece nada dessa escola e nem de sua teologia. Se conhecemos uma árvore pelos seus frutos, então é hora de falar da Faculdade Teológica Sul Americana, minha paixão e onde minha peregrinação em missão toma mais forma.
9. Dr. Paul E. Pierson e a Solana Beach Presbyterian Church (SBPC)
Em 1997, já na cidade de Pasadena (CA, EUA), o Dr. Paul Pierson estava saindo do estacionamento e ao me avistar, me chamou. Ele me disse: “Jorge, tem uma igreja que me pediu para indicar um estudante para eles investirem. E você é pessoa ideal para essa igreja”. Essa igreja estava buscando uma pessoa que tivesse as seguintes características: (1) Presbiteriano, (2) do Fuller, (3) internacional, (4) comprometido em voltar ao seu após seus estudos. E eu tinha todas essas características. Dr. Pierson me colocou em contato com o Rev. Tom Theriault (que havia estudado no Fuller) veio a Pasadena me conhecer e também minha família. Depois de um tempo nos levou a cidade Solana Beach (CA) e a partir desse momento investiram em minha vida, desde 1997 até 2021, sendo 24 anos de muito envolvimento e amor mútuo. Sou muito grato a toda a igreja como também ao Rev. Mike McClenahan (Senior Pastor), Rev. Juan-Daniel Espitia e André Rocha, que foi meu aluno na FTSA, e é o Diretor da Mission and Outreach.
10. Faculdade Teológica Sul Americana (FTSA)
Com o propósito de preparar vidas para servir o Reino de Deus é que surge a FTSA, em 1994. Uma escola interdenominacional, como o Fuller, que tem um olhar para além da formação para a denominação; é formação para missão. Entendemos que a formação teológica deveria ter sua razão de existir na missio Dei a partir das comunidades e instituições que estão a serviço do Reino. Nossa ênfase em uma missiologia pastoral e uma pastoral missiológica atrai vários estudantes do Brasil, da África, América Latina e alguns da Europa e Estados Unidos. A FTSA adota o Pacto de Lausanne em sua confissão de fé, assume o compromisso de fomentar e difundir a missão integral. Os estudantes são expostos a esse conceito que se desemboca na prática por meio dos muitos ministérios que eles criam em suas cidades, das igrejas que passam a pastorear e fundar. O corpo docente da FTSA é comprometido com a missão integral. Dessa forma, desejamos ver a renovação da igreja e da sua missão por meio da formação desses líderes que passam pela FTSA. Reconhecemos que somos um instrumento, dentre outros, promotores da missão integral no Brasil e América Latina. Não se trata aqui de presunção, mas vocação.
Conclusão
O único que pode nos convencer e converter a missão é o próprio Deus, por meio do seu Espírito. Deus é Deus em missão, é o Deus-missional, que por sua vez, quer uma igreja-missional. Meu compromisso de vida, nessa peregrinação em missão é fazer parte do movimento do amor de Deus para a humanidade. Nesse movimento o Espírito de Deus sempre esteve à frente e sempre estará. Quem ama a Deus, ama o que Ele ama – o mundo – o lócus da missão de todos nós. Sou um peregrino, um andarilho, um caminhante, que como discípulo de Cristo, ama o Pai e sua missão.